Uma das melhores — e talvez a mais notável — trilogia da história do cinema, “O Poderoso Chefão” será relançada agora em maio (nos dias 19, 20 e 21, em sequência) nos cinemas brasileiros pela rede Cinemark, em sessões exclusivas com ingressos populares a partir de R$15.
A notícia triste é que o relançamento não chegará a Rondônia, pois não há nenhuma sala da rede Cinemark no estado.
Diante disso, a alternativa é assistir por streaming, DVD ou Blu-ray e revisitar os filmes. Particularmente, não sou muito fã do terceiro longa, que encerra a trilogia — lançado originalmente em 1991.
No início deste ano, o IMDb (Internet Movie Database) — importante banco de dados online da Amazon sobre filmes, séries, documentários, podcasts, videogames e conteúdo de streaming — divulgou sua lista dos 30 melhores filmes da história do cinema, com base nas avaliações da crítica e do público. O primeiro filme da trilogia, lançado em 1972, ficou em segundo lugar.
Aproveitei o gancho e escrevi uma análise crítica sobre esse clássico, que, na minha lista pessoal, ocupa o primeiro lugar absoluto.
Atenção: para quem ainda não assistiu, o texto a seguir contém spoilers.
Segue o fio:
O cinema é uma paixão — e poucos filmes conseguem, com perfeição, entregar a experiência completa: fuga da realidade, imersão na ficção dramática e uma narrativa sólida, com personagens bem construídos e coerentes em suas trajetórias. Quando tudo isso acontece de forma harmoniosa, o resultado é uma obra-prima inimitável.
Foi exatamente isso que o diretor Francis Ford Coppola realizou em 1972 ao entregar uma de suas maiores obras. (Embora “O Poderoso Chefão – Parte II” seja, para mim, ainda mais sublime. E tenho grande apreço também por “Apocalypse Now”). Tudo isso, vale lembrar, feito sob a desconfiança da Paramount Pictures, estúdio que produziu o longa.
“O Poderoso Chefão” (The Godfather) é um filme perfeito — sem tirar nem pôr. Baseado no livro homônimo do jornalista e romancista ítalo-americano Mario Puzo (que também co-roteirizou os três filmes da trilogia), o título original significa literalmente “O Padrinho”, em referência direta ao protagonista: Don Vito Corleone.
Don Vito é um imigrante siciliano que chegou aos Estados Unidos ainda menino e, a partir do nada, construiu um império. Sua influência se sustenta numa política de “ajuda em troca de favores”, tornando-o uma figura respeitada (e temida) tanto dentro quanto fora da comunidade italiana. Com o tempo, tornou-se um magnata do ramo de azeites — fachada legítima de uma rede de atividades que inclui jogatina, prostituição e comércio ilegal de bebidas alcoólicas, base da fortuna da família Corleone.
Na década de 1940, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, Don Vito Corleone é um dos chefes das cinco famílias mafiosas de Nova York. Ele detém grande poder e influência — não apenas no submundo do crime, mas também na política (mantendo diversos políticos em sua folha de pagamento), na Justiça, na polícia e até no setor de entretenimento, como cassinos e o show business.
Homem de influência incontestável e amplamente respeitado pelos demais chefes, sua força não vem apenas do medo ou da violência, mas da valorização da família — pilar que sustenta sua autoridade. Para ele, os negócios devem ser ados de pai para filho desde cedo, ensinando-lhes todos os meandros e corrupções do sistema. Além da família, Don Vito conta com a ajuda de um homem de extrema confiança, seu conselheiro — ou, como é chamado na tradição siciliana, o "consigliere".
É sob esse contexto que o filme se inicia de forma brilhante, mantendo ao longo de toda a narrativa um equilíbrio entre tensão, confrontos e momentos de êxtase dramático.
A cena de abertura é emblemática: um close no rosto de Amerigo Bonasera (Salvatore Corsitto), que suplica justiça. Ele relata, com dor, o sofrimento de sua única filha, brutalmente agredida e deformada, enquanto os responsáveis foram soltos sem sofrer punição. É o pedido de justiça negada pelo Estado que o leva até Don Corleone, para buscar reparação fora da lei — é aqui que a trama começa a se revelar em toda sua potência.
Enquanto Bonasera narra sua história, a câmera realiza um zoom lento e contínuo, abrindo a imagem aos poucos. Aos poucos, vemos que ele está diante de um homem que o escuta atentamente. A câmera, posicionada baixa, está na altura dos dois — ambos sentados. Essa sequência tem cerca de três minutos, com uma sincronia impecável entre o movimento de câmera e o corte final, que revela quem escuta: Don Vito Corleone (Marlon Brando), elegante, vestindo um smoking.
O momento se torna ainda mais marcante quando Don Vito demonstra descontentamento com Bonasera. Afinal, em vez de comparecer à celebração, ele aparece no dia do casamento de sua filha, Constanzia “Connie” Corleone (vivida por Talia Shire, irmã do diretor Coppola), para pedir um favor pessoal: que se vingue dos homens que espancaram sua filha.
A situação se agrava quando Bonasera, de forma insensível, pergunta quanto Don Vito cobraria pelo serviço. Ofendido, o Padrinho recusa qualquer tipo de pagamento — ele não vende justiça, mas aceita lealdade e respeito. Apenas isso. Diante da negativa, Bonasera beija a mão de Don Vito, selando o pacto, e o público a a entender como o Padrinho atua e como se constrói sua rede de lealdade e influência.
Após a saída de Bonasera, vemos que estão na sala Tom Hagen (Robert Duvall), o consigliere da família, e Santino “Sonny” Corleone (James Caan), o impetuoso filho mais velho e sucessor natural dos negócios, quando Don Vito se aposentar. Logo após, somos levados para a festa de casamento de Connie Corleone e Carlo Rizzi (Gianni Russo) — uma grande celebração no estilo italiano, repleta de parentes, aliados, políticos e figuras da alta sociedade nova-iorquina. Aparecem também diversos apadrinhados, que se aproximam de Don Vito para pedir ajuda, pois, segundo a tradição siciliana, um homem nunca deve recusar um pedido no dia do casamento de sua filha.
É durante essa festa que somos apresentados aos principais personagens do filme, junto com seus comportamentos, motivações e traços que irão definir suas ações ao longo da narrativa. Para mim, trata-se da melhor apresentação de personagens já feita na história do cinema.
É nesse cenário que conhecemos Michael Corleone (Al Pacino), o filho mais novo de Don Vito, ex-militar e herói de guerra, que comparece ao casamento acompanhado de sua namorada, Katherine “Kay” Adams (Diane Keaton, musa do diretor Woody Allen nos anos 70). Michael demonstra, desde o início, ser alheio aos negócios da família, e até mesmo seu pai deseja que ele siga um caminho diferente, longe do submundo do crime.
Também somos apresentados ao irmão do meio, Frederico “Fredo” Corleone (John Cazale), um sujeito despreocupado e brincalhão, mas claramente frágil e influenciável.
A narrativa apresenta ainda os principais nomes que compõem o círculo interno de Don Vito:
Peter Clemenza (Richard Castellano), um dos homens de confiança mais antigos, que está ao lado do Padrinho desde a juventude;
Salvatore “Sal” Tessio (Abe Vigoda), outro caporegime leal da família;
E o imponente Luca Brasi (Lenny Montana), talvez o mais temido dos associados, cuja lealdade a Don Vito é quase devocional.
Ainda durante a festa, ficamos sabendo que Michael não deseja se envolver nos negócios escusos da família — e essa distância, inicialmente, é respeitada por Don Vito, que sonha com um futuro honesto para ao menos um de seus filhos.
Outro momento marcante dessa abertura é a visita de Johnny Fontane (Al Martino), ator e cantor em decadência, apadrinhado por Don Vito. Ele precisa desesperadamente de um papel em um filme que pode reviver sua carreira. Só o poder de influência de Corleone seria capaz de convencer o produtor do estúdio — o que leva a uma das cenas mais icônicas do cinema, envolvendo uma cabeça de cavalo, mas isso será explorado mais adiante.
Essa abertura de “O Poderoso Chefão” é um primor narrativo: são exatos 30 minutos que introduzem, com maestria, os personagens, os conflitos e as dinâmicas familiares que permearão toda a trama — estabelecendo a base do que virá a ser o destino da família Corleone em meio à disputa entre as famílias mafiosas de Nova York.
O poder de persuasão de Don Vito é retratado de forma espetacular em uma das sequências mais notáveis da história do cinema. Nela, Tom Hagen (Robert Duvall) viaja a Los Angeles para fazer uma "proposta irrecusável" ao poderoso produtor de cinema Jack Woltz (John Marley), pedindo que ele permita que Johnny Fontane atue no próximo grande filme de seu estúdio.
Hagen é recebido na luxuosa mansão de Woltz, onde conhece as instalações, incluindo o haras particular que abriga um dos bens mais preciosos do produtor: um cavalo de raça pura, premiado, adquirido por uma fortuna. No entanto, ao revelar que representa os interesses de Don Vito Corleone, Hagen rapidamente se depara com a hostilidade de Woltz, que rejeita a proposta e o expulsa de sua casa.
Na manhã seguinte, Woltz acorda com a cama molhada por um líquido viscoso. Ao perceber que sua mão está coberta de sangue, entra em pânico. Ele levanta o lençol — e então se depara com a cabeça de seu cavalo premiado, decepada e coberta por uma poça de sangue. O recado está dado. Sabemos, sem sombra de dúvida, que Johnny Fontane terá seu papel no filme.
Logo em seguida, surge um novo personagem: Virgil Sollozzo, conhecido como "o Turco" (Al Lettieri). Empresário do tráfico e protegido da família Tattaglia, ele pretende expandir o comércio de heroína em Nova York. Para isso, precisa do apoio de Don Vito e, especialmente, de seus contatos na polícia, a fim de garantir que as drogas entrem no país sem fiscalização. Em troca, oferece uma porcentagem dos lucros — com promessas de milhões de dólares.
Apesar da proposta tentadora, Don Vito recusa participar. Firme em seus princípios, ele considera que o narcotráfico comprometeria a estabilidade das famílias, tanto no sentido criminal quanto moral. Mesmo quando Sonny tenta argumentar a favor do negócio, Don Vito o interrompe com uma advertência severa: não se discute negócios na frente de estranhos.
A recusa enfurece Sollozzo, que deixa o encontro contrariado. E, como ele mesmo diria mais tarde: “Não é nada pessoal, apenas negócios.”
É esse o estopim de uma virada brutal na narrativa. Na véspera de Natal, Don Vito sai com Fredo para comprar frutas em uma feira de rua. Ao perceber dois homens suspeitos se aproximando, ele pressente a emboscada. Mesmo gritando pelo filho, não consegue escapar: leva cinco tiros pelas costas e fica gravemente ferido, enquanto Fredo, em choque, cai em prantos ao lado do pai, impotente.
Tem início, então, uma divisão interna na família Corleone. O impulsivo Sonny deseja se vingar imediatamente da família Tattaglia e de Sollozzo, enquanto Tom Hagen, mais cauteloso, interpreta o atentado como um aviso e pede tempo para agir com sabedoria — tentando evitar uma inevitável guerra entre as famílias mafiosas.
Diante do atentado ao pai, Michael, até então distante dos negócios da família, decide se envolver, para o espanto e desespero de Tom e Sonny, que sabem que Don Vito sempre desejou preservar o filho mais novo desse mundo criminoso.
O clima se torna ainda mais tenso e sombrio quando Don Vito sobrevive aos tiros e permanece internado no hospital, sob proteção da família. Em uma noite, Michael decide visitar o pai e percebe que os guardas haviam desaparecido, o que indicava uma tentativa de assassinato. Ele age rapidamente para proteger o pai, mas, ao cobrar providências, acaba enfrentando o Capitão da polícia local, Mark McCluskey (Sterling Hayden), que o agride violentamente. Em resposta, Michael leva um soco que desloca seu maxilar.
A situação muda drasticamente quando Sollozzo pede uma nova reunião com os Corleone, oferecendo mais uma vez o acordo sobre o tráfico de drogas. Michael aceita ser o intermediador, já claramente envolvido com os assuntos da família. O encontro é marcado em um restaurante italiano no Bronx, onde Michael — após um momento de tensão magistral — assassina Sollozzo e o Capitão McCluskey, selando sua entrada definitiva no mundo do crime.
Para evitar represálias imediatas, Michael é enviado à Itália, para uma região próxima à Sicília, onde é acolhido por Don Tommasino (Corrado Gaipa), um velho amigo e aliado de Don Vito. Lá, Michael conhece Apollonia (Simonetta Stefanelli), uma jovem de uma família tradicional e conservadora. Encantado, ele se casa com ela, em uma cerimônia típica siciliana.
Enquanto isso, nos Estados Unidos, Don Vito recebe alta e retorna para casa. No leito, ele é informado de que Michael foi o autor dos assassinatos e teve que fugir para a Itália — notícia que o entristece profundamente.
O cenário se agrava quando Sonny cai em uma emboscada brutal, orquestrada por rivais com a cumplicidade do marido de sua irmã, Carlo. O assassinato de Sonny marca um ponto de virada na guerra entre as famílias mafiosas. A notícia logo chega à Sicília, e Michael decide que é hora de voltar aos Estados Unidos.
Don Vito, então, reúne as cinco famílias para pôr fim à guerra entre elas, temendo pela segurança de Michael no seu retorno aos Estados Unidos. Com seus argumentos ponderados e diplomáticos, ele consegue estabelecer um acordo de paz com seu maior rival, Don Philip Tattaglia (Victor Rendina), e as famílias celebram a trégua.
Porém, nos preparativos de viagem com a esposa Apollonia, uma tragédia acontece. Um de seus seguranças o trai e instala uma bomba no carro de Michael. Ao notar o comportamento suspeito do guarda, que foge correndo, Michael desconfia. Nesse momento, ele vê sua esposa entrando no veículo para surpreendê-lo — ela queria mostrar que havia aprendido a dirigir. Ao girar a chave de ignição, o carro explode.
Essa perda marca a transformação definitiva de Michael. A dor o molda em um novo homem, mais frio e implacável. Ele retorna à América e assume o lugar do pai, tornando-se o novo chefe da família Corleone. Casa-se com sua antiga namorada, Kay Adams, que logo engravida. Michael a, então, a receber os ensinamentos de Don Vito, que o orienta sobre os bastidores do poder, os jogos de influência e, principalmente, a observar com atenção os que se dizem leais.
Com inteligência, frieza e astúcia herdadas do pai, Michael traça seu plano de ascensão definitiva ao topo entre as famílias mafiosas. Elimina os traidores e posiciona-se estrategicamente à frente de seus adversários.
Após a morte de Don Vito, vítima de um ataque cardíaco, Michael descobre, durante o funeral, quem dentro do círculo de confiança traiu os Corleone. Com um plano calculado, ele decide agir no mesmo dia do batizado de seu sobrinho, ocasião em que será padrinho. Durante a cerimônia religiosa na catedral, ocorre uma das sequências mais brilhantes e tensas da história do cinema: enquanto ouvimos o rito do batismo sendo entoado em latim pelo arcebispo, a montagem intercala imagens da execução dos chefes rivais, inclusive Moe Greene (Alex Rocco), proprietário de um cassino em Las Vegas que Michael planejava adquirir.
Essa montagem paralela entre o sacramento e os assassinatos violentos é um dos momentos mais icônicos do filme, simbolizando a dualidade de Michael — o homem de família e o novo Don da máfia.
Michael segue os ritos do batismo, e em seu rosto há a expressão fria e calculada de quem sabe que seu plano está sendo executado sem levantar suspeitas.
Após a cerimônia, ele é informado de que tudo ocorreu conforme o planejado. Na saída da igreja, avisa a irmã, Connie, que seu marido, Carlo, será enviado para Las Vegas, onde assumirá um cargo estratégico dentro dos negócios da família.
Carlo, sentindo-se finalmente valorizado, vai até o apartamento para arrumar suas coisas. Lá, encontra Michael, Tom Hagen e dois capangas. É então desmascarado: Michael revela que sabe de sua participação na emboscada que resultou na brutal morte de Sonny. Ainda assim, afirma que, por ter acabado de se tornar padrinho do filho de Carlo, não o matará — mas que ele deve sair imediatamente para Las Vegas.
No entanto, ao entrar no carro que o levaria supostamente ao aeroporto, Michael dá a ordem. Carlo é enforcado com um fio no pescoço, executado de forma impiedosa.
Logo após, na residência da família Corleone, Connie aparece desesperada, gritando com Kay e acusando o irmão de ter mandado matar seu marido. Invade o escritório onde Michael despacha com seus homens de confiança, e ele tenta acalmá-la, negando responsabilidade pelo ocorrido.
Quando Connie é retirada da sala, Kay confronta o marido e lhe pergunta se é verdade o que ouviu. Irritado, Michael permite, pela primeira e única vez, que ela faça uma pergunta sobre os negócios da família. Ela pergunta diretamente: “Você matou Carlo?” Ele nega.
Kay aceita a resposta, mas sua expressão revela temor. O homem diante dela já não é mais o mesmo que conhecera: agora é frio, poderoso e inatingível. Ao sair do escritório, ela se vira e vê uma cena que sela a transformação de Michael. Os homens de confiança do antigo Don entram, beijam a mão de Michael e o chamam de “Don Corleone”.
Michael sucedeu o império do pai. Comanda agora com mãos firmes o legado dos Corleone — o novo Padrinho.
Alguém fecha a porta do escritório. A última imagem é o olhar firme e silencioso de Michael para Kay.
Fim.
Curiosidade final:
O filme, assim como toda a trilogia, está disponível na Netflix, Amazon Prime Video, Paramount+ e Telecine Play. A Paramount lançou um box em DVD e Blu-ray com os três filmes remasterizados e restaurados. Mais recentemente, O Poderoso Chefão - Parte III ganhou uma nova edição para celebrar seus 30 anos de lançamento, com título alternativo: “Desfecho: A Morte de Michael Corleone”, que traz cenas extras e nova montagem conforme a visão original do diretor Francis Ford Coppola.