ALERTA – SE VOCÊ É MUITO SENSÍVEL E TEM DIFICULDADE COM TEMAS POLÊMICOS ENVOLVENDO PERDA DE FAMILIARES OU AMIGOS DE FORMA TRÁGICA, EVITE. SÉRIO, EVITE.
A primeira vez que esse documentário foi exibido no Brasil foi no canal pago GNT (Globo), em 2009, com o título “Dear Zachary: Um caso chocante”. No entanto, o título original em inglês carrega mais força e profundidade: “Dear Zachary: A Letter to a Son About His Father” (algo que, em tradução literal, significa “Uma carta a um filho sobre seu pai”). Esse título já revela muito sobre o conteúdo do filme, que foi escrito, produzido, editado e dirigido por Kurt Kuenne — que também foi responsável pela trilha sonora, a qual tem um uso catártico no terço final do documentário, intensificando ainda mais o tom sombrio da narrativa.
Kurt era o melhor amigo de Andrew Bagby, um jovem residente de medicina que foi morto de forma trágica por uma ex-namorada obcecada. Os dois eram vizinhos desde a infância e cresceram juntos nos subúrbios de San Jose, na Califórnia, cultivando uma amizade profunda.
Não, isso não é spoiler. Essa tragédia é justamente a base do documentário, que inicialmente foi pensado como uma espécie de relicário em homenagem ao grande amigo Andrew — um jovem carismático, irado por todos que o conheciam. Assim, Kurt saiu em busca de depoimentos de familiares — muitos profundamente emocionados pela forma brutal como a vida de Andrew foi interrompida — e também de amigos: colegas de escola, faculdade e até vizinhos que fizeram parte de sua trajetória.
A primeira parte do documentário é um relato emotivo de todos que cruzaram o caminho de Andrew. Os depoimentos são acompanhados de imagens — principalmente fotos — que retratam sua infância, adolescência e momentos de diversão e alegria. Esses trechos são narrados por familiares (pais, ainda vivos, primos, tios) e amigos da vizinhança, compondo um retrato comovente de quem Andrew foi.
Os relatos são bem construídos, pois ajudam a criar empatia por Andrew e a estruturar com profundidade sua vida cotidiana. É possível compreender como sua personalidade foi moldada ao longo dos anos e como ele exercia uma influência cativante através de atitudes simples, humanas e extremamente positivas.
O interessante desse documentário é que, durante sua realização, certos acontecimentos levaram Kurt a mudar o foco do projeto — inclusive provocando uma alteração no título original.
Kurt decide então acrescentar, com mais detalhes, o crime cometido pela ex-namorada de Andrew, utilizando como base o relato emocionante e revoltado dos pais dele. A partir desse ponto, o filme a a contextualizar a situação que levou à morte de Andrew.
Na época, Andrew estava concluindo sua residência médica na Memorial University, em Newfoundland, quando iniciou um relacionamento sério com uma recém-formada em medicina: Shirley Turner, treze anos mais velha que ele. Essa relação desagradou profundamente sua família — especialmente os pais, David e Kathleen — já que Shirley já havia ado por dois divórcios.
Mesmo com seu espírito inquieto e sempre alegre, os próprios amigos de Andrew nunca se acostumaram com seu relacionamento com Shirley. Nos encontros entre eles, havia sempre um desconforto evidente provocado pela presença dela. Nos depoimentos apresentados no documentário, eles relatam que havia algo em Shirley que os perturbava profundamente.
Um detalhe importante: quando Andrew se formou, no ano de 2000, acabou se mudando para Nova York, onde conseguiu uma vaga em um programa de residência médica. Shirley, por sua vez, mudou-se para Iowa. Apesar da distância, o relacionamento entre os dois continuou.
Logo depois, Andrew foi transferido para uma nova residência médica, dessa vez na área de clínica geral, em Latrobe, na Pensilvânia. Foi a partir dessa mudança que Shirley começou a demonstrar um comportamento cada vez mais possessivo. A situação se agravou quando Andrew começou a dar sinais de que pretendia terminar o relacionamento — o que de fato aconteceu no dia 3 de novembro de 2001.
No documentário, Kurt narra que Turner voltou para sua casa em Iowa, mas, sem aceitar o fim do namoro, pegou o carro no dia seguinte e dirigiu por mais de 1.600 km de volta até Latrobe. Dois dias depois, ela chegou à cidade e marcou um encontro com Andrew em um skate park à noite.
No dia seguinte, sem dar notícias, Andrew foi dado como desaparecido. Horas depois, a polícia encontrou seu corpo caído na calçada, com cinco tiros, já sem vida.
Shirley rapidamente ou de suspeita a principal acusada. No entanto, fugiu para o Canadá, onde não poderia ser extraditada para os Estados Unidos sem que fosse cumprido um extenso e burocrático trâmite legal. Ela chegou a ser presa em dezembro de 2001, mas foi liberada sob fiança. O processo referente ao crime que cometera nos EUA ou a tramitar nos tribunais canadenses.
Esse processo de extradição acabou, de certa forma, beneficiando Shirley diante do que havia feito com Andrew, já que se tornou longo e cheio de obstáculos jurídicos. Seus advogados exploraram diversos atalhos jurídicos, amparando-se em brechas e formalismos legais.
Enquanto isso, Kurt já estava envolvido na produção do documentário, reunindo imagens de filmes caseiros com seu falecido amigo, além de realizar entrevistas e colher depoimentos. Foi nesse momento que surgiu a primeira grande reviravolta no caso: Shirley anunciou que estava grávida de Andrew havia quatro meses. A revelação causou um enorme choque nos pais da vítima, que logo confirmaram a veracidade da gravidez.
Quando ela deu à luz — ainda residindo no Canadá —, nasceu um menino, no dia 18 de junho de 2002. Ele recebeu o nome de Zachary — o mesmo do título do documentário. Inspirado por esse nascimento, Kurt decidiu mudar o foco da obra. O documentário aria a ser não apenas uma homenagem a Andrew, mas também um legado afetivo para que Zachary, ao crescer, pudesse conhecer e compreender quem foi seu pai.
A partir daí, Kurt ou a acompanhar de perto a luta dos pais de Andrew, David e Kathleen, registrando com sensibilidade e detalhes a batalha deles para obter a guarda do pequeno Zachary. Em um primeiro momento, um tribunal reconheceu que havia elementos suficientes sobre o envolvimento de Shirley no assassinato, e decidiu por sua prisão. Com isso, o bebê foi finalmente entregue aos cuidados dos avós paternos.
No entanto, mais uma reviravolta mudou tudo. Graças a uma apelação judicial articulada pelos advogados de Shirley — com o apoio de um psicólogo que atestou sua sanidade mental —, ela foi libertada sob fiança em janeiro de 2003. Um juiz considerou que ela não representava ameaça à sociedade.
Com isso, Shirley conseguiu, por vias legais, estabelecer um regime de guarda compartilhada com os avós paternos.
O mais absurdo de toda essa situação é testemunhar os pais de Andrew sendo obrigados a aceitar essa guarda compartilhada e, pior ainda, a se mudarem para o Canadá, atendendo às exigências impostas pela assassina do próprio filho, apenas para poderem ficar próximos do neto e ajudá-lo a crescer.
Vou encerrar por aqui, pois tem outra reviravolta. Porque o que já era sentido e profundamente triste, diante de tantos absurdos, ganha um desfecho avassalador no terço final do documentário. Um desenrolar tão impactante que acabou provocando mudanças reais na legislação canadense, especialmente nas normas relacionadas às audiências de fiança.
O peso emocional que o filme carrega em seu desfecho é intenso. Ele desperta um alerta, acende um sinal vermelho sobre o comportamento humano e revela o lado mais cruel das pessoas. É impossível não se emocionar. É impossível não gritar.
“Dear Zachary” é, sem dúvida, um dos melhores documentários do gênero true crime, mas vai muito além da fórmula comum. Sua força está na estrutura narrativa construída enquanto os acontecimentos ainda se desenrolavam durante a própria produção. É um filme que testemunha a dor, mas também o amor, o luto e a luta.
“Dear Zachary: Um caso chocante” está disponível na íntegra no YouTube, com legendas em português. Basta digitar o título na busca. São uma hora e meia de um documentário como nenhum outro. E prepare-se: você não sairá ileso.