UM AVISO: SE VOCÊ NÃO JOGOU O GAME THE LAST OF US – PARTE II OU NÃO ASSISTIU À SÉRIE E PRETENDE JOGAR OU ASSISTIR, SAIBA QUE ESTA ANÁLISE CONTÉM SPOILERS. FICA O ALERTA.
Quando o game The Last of Us – Parte II foi lançado oficialmente para o console PlayStation 4, em junho de 2020, causou um alvoroço como nunca antes visto, pois o primeiro jogo, lançado em 2013, havia feito um sucesso estrondoso.
A saga do contrabandista Joel Miller e da adolescente Ellie Williams — imune ao contágio que devastou parte da humanidade após a proliferação do fungo cordyceps, que transformava os infectados em mortos-vivos sedentos — provocou uma catarse coletiva. Isso porque o jogo foi além do típico pós-apocalipse cheio de ação: criou-se uma conexão profunda, quase visceral, entre os jogadores e a história, ao retratar a construção de um amor genuíno entre pai e filha, moldado pela tragédia e pelos confrontos ao longo de uma jornada de autoconhecimento e pela busca da cura.
Na parte dois, o criador e diretor Neil Druckmann elevou a experiência a outro nível, com um aprimoramento visual e de jogabilidade fenomenais. Junto à roteirista Halley Gross, ele deu continuidade à relação entre Joel e Ellie, agora vivendo na comunidade de Jackson, em Wyoming. A experiência de sobrevivência neste mundo tornou-se ainda mais sólida e brutal, pois as consequências das ações de Joel levam a um evento inesperado logo no início do jogo — e esse evento a a ser o motor principal da protagonista, Ellie, numa jornada de vingança sem precedentes.
O que foi feito no jogo — a intensidade das ações, das motivações e, principalmente, a transformação psicológica de Ellie em sua caçada contra os responsáveis pela morte de Joel — impacta tanto que o jogador se sente parte dessa busca implacável por vingança. Ellie é obrigada a assistir à execução brutal de Joel, e esse trauma se torna o gatilho para uma espiral de violência, em que ela a por cima de tudo e todos, usando meios muitas vezes cruéis para atingir seu objetivo: encontrar a mulher responsável pela morte de seu protetor.
Essa mulher é Abby, personagem que também tem uma motivação legítima para seus atos — algo que só descobrimos na metade do jogo, numa virada inesperada: deixamos de jogar com Ellie e amos a controlar Abby, acompanhando sua trajetória antes e depois da morte de Joel, até o momento em que ela mesma busca redenção.

A inventividade de mudar o ponto de vista do jogo — saindo da protagonista para a causadora da tragédia pessoal de Ellie — é algo impactante de sentir enquanto se joga. A sensação inicial é de desconforto, até que embarcamos na verdade por trás da motivação de Abby, que a levou a matar Joel. Afinal, Joel foi o responsável pelo fim dos Vagalumes, exterminando quase todos em um massacre dentro do hospital onde Ellie seria operada. O médico responsável criaria uma cura para a infecção pelo Cordyceps a partir da imunidade da garota, por meio de uma cirurgia cerebral que a mataria. Joel não aceitou perdê-la, e fez o que fez — inclusive matando com um tiro na cabeça o médico… que era o pai da Abby.
Esses eventos do massacre no hospital estão presentes no primeiro jogo.
Essa é a motivação que levou Abby a ar cinco anos de sua vida em busca do paradeiro de Joel, em uma jornada de vingança que culmina na sua execução brutal — diante de uma Ellie impotente, forçada a assistir à cena devastadora.
No jogo, temos então uma inversão de papéis. Com a morte de Joel, é Ellie quem mergulha em uma espiral destrutiva que consome sua sanidade, tomada pela sede de vingança. No entanto, quando amos a jogar com Abby, o contraste é marcante: acompanhamos seu caminho rumo à redenção, especialmente ao decidir proteger dois irmãos serafitas, Yara e Lev, condenados por seus próprios pares. É nesse arco que Abby se reconstrói como personagem.
E a série?
A segunda temporada de The Last of Us, produzida pela HBO e continuação da primeira (exibida em 2023), adapta os eventos da Parte II do jogo — mas, infelizmente, tropeça feio. Ao tentar dar um formato mais serializado para a mídia televisiva, a adaptação altera a cronologia e desconstrói personagens essenciais, perdendo justamente a essência que fez do game uma das narrativas mais intensas, trágicas e brutais já feitas.
Mesmo com a chancela de Neil Druckmann, criador dos games, um dos produtores da série, Craig Mazin — também produtor e showrunner — teve liberdade para reinterpretar os acontecimentos do jogo. Contudo, na minha opinião pessoal, as mudanças foram tão substanciais que acabaram por esvaziar a alma daquela história tão marcante.
Pior ainda: a personagem principal do jogo, Ellie, foi enfraquecida. Sua impetuosidade vingativa, sua transformação como sobrevivente emocionalmente abalada por um trauma profundo, foi substituída por uma versão quase heroica — mais humana, é verdade, mas também mais iva, menos astuta e mais conformada. Isso dilui o impacto da sua jornada, que no jogo é visceral, inquietante e inesquecível.
Há erros de proporção entre as ações das personagens e sua maneira de pensar, o que compromete a coerência narrativa. Em vários momentos, percebe-se uma certa comodidade emocional da Ellie motivada por seu amor por Dina, o que a enfraquece dramaticamente. A jornada de vingança, que deveria ser visceral e ininterrupta, parece aleatória — quando, na verdade, é exatamente o contrário. Essa busca é o propósito da Ellie raiz. Um propósito que, na série, só é realmente sentido em uma única cena: quando ela encontra Nora nos porões do hospital e a tortura para obter o paradeiro de Abby. Ali sim, há força, intensidade e urgência.

Sim, é compreensível que algumas mudanças sejam justificadas pela transposição da história para a linguagem televisiva. O escopo da ação é outro. No game, é você quem segura o controle, quem toma decisões em tempo real e vivencia a intensidade de cada movimento — agir, sobreviver, escapar, morrer e recomeçar. Essa urgência operacional é exclusiva do videogame e simplesmente não existe na narrativa iva da TV. Por isso, é natural que a série busque se ater mais à realidade, tornando os personagens mais cautelosos e menos impulsivos. A ação, na televisão, é calculada pelo roteiro e pela direção em uma escala mais contida, ainda que tecnicamente grandiosa.
Porém, essa transição de uma mídia imersiva, longa e mais impactante para outra pausada e com ação calculada, que foi tão bem feita na primeira temporada, aqui falha miseravelmente.
A HBO, é verdade, entrega uma produção tecnicamente primorosa. Os cenários naturais, o design de produção, a direção de arte, os efeitos visuais (tanto práticos quanto em CGI) e a maquiagem são todos de altíssimo nível. O elenco também é um acerto: Pedro Pascal e Bella Ramsey entregam atuações competentes, muito acima da média, refletindo bem os traços centrais de Joel e Ellie. Ramsey, em especial, encara um desafio enorme — e mesmo sendo alvo de ódio gratuito por parte de “haters” e nerdolas que criticam sua aparência, ela consegue atender às exigências dramáticas da personagem, especialmente nos momentos mais densos.
O problema maior da segunda temporada está nas decisões de cronologia e caracterização, que causam ruídos profundos em relação ao material original. A mudança na personalidade da Ellie — agora mais vulnerável e tola — afasta a personagem de sua essência: aquela mente estratégica e fria, que vai se autodestruindo em sua jornada de vingança. Em seu lugar, temos uma versão mais iva, menos intensa.
Além disso, certas liberdades criativas soaram forçadas ou até desnecessárias. Exemplos:
– O Conselho de líderes de Jackson debatendo se iriam ou não atrás do grupo que matou Joel, algo que quebra o ritmo narrativo;
– O dono do bar homofóbico que, do nada, vira um homem bondoso;
– Ellie sendo capturada e quase enforcada pelos Serafitas, o que não tem respaldo narrativo forte;
– E, sobretudo, a atitude da própria Ellie em relação ao início da sua jornada: ela parece anestesiada, por vezes se divertindo com Dina, como se a morte brutal de Joel não fosse o gatilho que deveria tê-la lançado imediatamente ao abismo da vingança.
Outros pontos polêmicos surgem, como a exposição precoce da motivação da personagem Abby, revelada logo na abertura do primeiro episódio. No jogo, essa informação só vem à tona na metade da narrativa, o que hiperdimensiona a carga emocional da personagem, tornando mais potente o impacto de sua busca e seu propósito de vingança. Antecipar esse detalhe na série dilui parte dessa tensão narrativa.
A invasão da comunidade de Jackson, que não existe no jogo, foi uma adição interessante na série. Apesar de ser uma quebra de narrativa, entendi como um recurso para sustentar duas ações dramáticas em um mesmo episódio (no caso, o segundo): de um lado, a união dos moradores de Jackson enfrentando uma horda de infectados; de outro, o grupo da Abby encontrando Joel e iniciando sua vingança. Funciona, mas muda a estrutura original da história.
Outro ponto que merece atenção é o uso de uma psicoterapeuta com quem Joel conversa no primeiro episódio. O diálogo em que ela confessa odia-lo por ter matado o marido, apesar de justificável, mas ainda assim imperdoável aos seus olhos, é uma construção narrativa que só se justifica no episódio seis — quando vemos Joel, de fato, matar o marido dela. Essa construção serve como gancho expositivo para reforçar a mentira que Joel contou à Ellie ao salvá-la no hospital, espelhando a tentativa de justificar, mais uma vez, o injustificável. É um intervalo de tempo longo para dar sentido a algo que não existe no jogo, mas funciona como recurso dramático para reforçar a quebra de confiança entre Ellie e Joel.
Entre os acertos da temporada, destaco a aparição da figura do Isaac, líder do grupo paramilitar WLF. Interpretado com excelência por Jeffrey Wright, Isaac representa um contraponto às milícias da FEDRA, o braço remanescente do governo. Sua liderança carismática, de forte apelo rebelde, o transforma em uma força dominante em meio ao caos — até que ele próprio sucumbe à própria ambição. Essa adição aprofunda a complexidade política e ideológica do mundo pós-apocalíptico retratado na série.
Outro grande destaque é a atuação de Isabela Merced como Dina. Carismática e emocionalmente convincente, ela rouba muitas das cenas em que contracena com Ellie. O roteiro, aliás, colabora, oferecendo à personagem camadas emocionais bem definidas e um espaço justo para seu desenvolvimento.
No balanço geral da temporada, composta por sete episódios, considero que três foram realmente bons — o segundo, o sexto (meu preferido) e o sétimo. Os demais ficaram em um patamar mediano, irregulares em construção e impacto.
Comparando com a primeira temporada, que considerei espetacular e muito mais fiel ao jogo, essa segunda temporada deixou bastante a desejar. A expectativa era alta — talvez até demais — e a decepção, infelizmente, veio na mesma proporção.
Agora, olhando para a terceira temporada, que deve seguir a lógica narrativa do game, veremos uma virada de protagonismo: Ellie sai de cena, e o foco a a ser Abby. A nova temporada deve abordar desde a morte de seu pai, a vingança contra Joel, até sua jornada de redenção. Esta, por sua vez, se dá na relação com dois jovens irmãos serafitas, Yara e Lev, com quem ela desenvolve um vínculo quase maternal — ou de irmã mais velha — enfrentando tanto os Serafitas quanto seu próprio grupo, o WLF.
Promete, mas sinceramente? Depois do que vi nessa segunda temporada, não vou criar expectativas. Triste dizer isso, mas a vontade que ficou foi a de jogar The Last of Us Part II pela oitava vez — e reviver como essa história deveria ser contada.