Dando prosseguimento aos artigos críticos dos filmes que comemoram 50 anos de lançamento, eu já escrevi sobre “Tubarão” (Jaws/1975) e “Um dia de Cão” (Dog Day Afternoon/1975), chegou a vez dessa obra prima do cinema cult e de arte. Pouco conhecido, porém amado por muitos diretores do cinema contemporâneo, “Jeanne Dielman”.
O filme “Jeanne Dielman” (Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles/1975), da diretora belga Chantal Akerman, foi eleito pela primeira vez como o melhor da história do cinema pela revista britânica “Sight & Sound”, que realiza a cada dez anos essa lista, que tem como base escolhas de críticos especialista e cineastas de renome - como Martin Scorcesse, Oliver Stone e Quentin Tarantino.
Essa é a primeira vez na história da publicação que um filme feito quase que totalmente por mulheres chega ao topo. Na última lista, publicada em 2012, "Jeanne Dielman" estava apenas em 35º lugar.
Em suma a Sight & Sound realiza enquetes entre críticos e diretores para identificar os melhores filmes de todos os tempos, atualizando-as a cada dez anos. Em 2022, a enquete entre diretores apontou como os melhores filmes "Jeanne Dielman", "2001: Uma Odisseia no Espaço" (de Stanley Kubrick) e "Cidadão Kane" (de Orson Welles).
A enquete dos críticos, por sua vez, destacou "Um Corpo que Cai" (de Alfred Hitchcock), "Cidadão Kane" e "Era uma Vez em Tóquio" (de Yasujiro Ozu) como os melhores filmes de todos os tempos.
Então “Jeanne Dielman” foi uma escolha dos diretores de cinema. E do que se trata esse filme com mais de três horas de duração, até um pouco difícil de achar?
Bom, num resumo rápido, se trata de um estudo de personagem - praticamente um voyeurismo na vida de uma mulher, Jeanne (a extraordinária atriz Delphine Seyrig), metódica, viúva, que cuida do filho adolescente que a o dia na escola, tem uma rotina metódica e métrica, que para viver bem se prostitui em casa no período da tarde.
Mas o que a diretora e também roteirista Chantal faz aqui é um exercício de estilo - o filme é totalmente acadêmico -, onde ela preza pelo quase niilismo no teor das cenas em uma repetição de sequência mostrando três dias da personagem principal e a sua rotina de dona de casa.
São nuanças assimétricas em que o tempo e a sincronia de seus atos em vário momentos são mostrados em tempo real. Como os primeiros 35 minutos do filme, praticamente sem diálogo, só a personagem em seu apartamento preparando o jantar, recebendo um cliente para um rendez vouz pago, depois dando continuidade ao prepara o jantar, depois recebe o filho de volta da escola, e cuidando de por o jantar à mesa - abre servindo uma sopa e depois batatas cozidas com carne ao molho - e assistimos todo esse ato, sem cortes. Em seguida, após comerem, ela retira os pratos da mesa, dar atenção ao filho, que é tímido e obediente, saem do apartamento, voltam e vão dormir.
Os dois nesses primeiros minutos tem um fiapo de diálogo. Porém toda a sequência ada dentro do apartamento, apenas com mudanças ambientes - cozinha, sala, sala e cozinha, cozinha e quarto, sala... - ganha uma atenção meticulosa pela economia de tomadas. Geralmente - ou perpétuo ato contínuo com a câmera é fixa, sempre em plano médio, onde como espectadores assistimos aquela mulher em suas atividades de rotina e a mania de apagar as luzes dos ambientes quando sai.
São detalhes que podem parecer descartáveis, mas não são, pois a construção da rotina dessa mulher é o grande mote do filme. O que pode ser chato e, até repetitivo, tem uma função narrativa que exige paciência aos menos experientes com filmes de arte como esse, porém vai aos poucos dando o formato crescente de uma mudança que vai fazer a diferença gritante na vida dessa mulher quando a rotina é quebrada inesperadamente no terceiro dia.
A rotina de Jeanne é quebrado por um detalhe simples, porém engenhoso e que vai afetar o seu dia de uma tal forma que ela vai sentir o impacto, que é introspectivo, porém tem sinais. O que resulta num final imprevisível e aberto.
A diretora tem o cuidado meticuloso de acompanhar a personagem nas cenas externas com a mesma precisão quando ocorre dentro do apartamento, até mesmo estendendo uma simples ida ao banco ou uma volta pelas ruas do centro de Bruxelas. A cãmera é um simulacro stalker daquela rotina.
As cenas externas, nas ruas, ela não fica em destaque, porém como uma figura aderida àquela realidade urbana iva, controlada.
Outro detalhe é a incrível direção de arte e o design de produção do apartamento (que é pequeno e apertado) - projetado, com certeza, para a colocação da câmera em pontos estratégicos - e a precisão da diretora de fotografia (a ótima Babette Mangolte), que consegue, mesmo com a câmera fixa dar mobilidade ao utilizar um recurso magistral e que foi definido pelo diretor Stanley Kubrick em seus filmes, o chamado “ponto de fuga” - que consiste em alinhar o ponto de fuga da cena com o centro da imagem, dando uma perspectiva de profundidade que sicroniza personagem e cenário numa única tomada fixa. Essa técnica é também conhecida como "one-point perspective".
Com os cenários internos - geralmente na cor com matizes em ocre - cheio de ângulos retos - quadrados e retângulo (uma mesa, armários, cadeiras, azulejos na parede, combinação de móveis com as portas) - a lenta dinâmica tem uma atração magnética.
O filme não é baseado em nenhuma obra literária ou fato real, mas de uma ideia apresentada pelo roteiro original escrito pela diretora belga Chantal Akerman. Uma curiosidade a respeito do título original é que se trata do endereço onde fica o apartamento da personagem, num edifício de cinco andares - é o que dá para contar nas cenas em que ela usa o elevador.
O filme está disponível para aluguel na plataforma de streaming Prime Video ou pode ser assistido no streaming da curadoria Filmicca.